Mais um título irá engrossar a já larga lista de livros e depoimentos
efetuados por torturadores e criminosos confessando as atrocidades
cometidas no período do gerenciamento militar. Trata-se do volume “Memórias de uma guerra suja”, do
ex-delegado do famigerado Departamento de Ordem Política e Social
(DOPS) do Espírito Santo Cláudio Antônio Guerra. O livro, que é fruto
de depoimentos de Guerra aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério
Medeiros, traz uma série de confissões de alguém que agora se diz
“arrependido”. Assassinatos, torturas e incineração de cadáveres, com
descrições de episódios que passariam como sendo do campo de
concentração de Auschwitz, a não ser por uma única –e essencial
–diferença: ocorreram no Brasil.
A típica trajetória de um carrasco:
Estamos acostumados a ver, na história
oficial do País e nos monopólios de imprensa, as Forças Armadas e
policiais serem apresentadas como “corretas” e “decentes” defensoras da
“ordem e dos bons costumes”, da “Pátria” e da “família”, uma ladainha
que apesar de vulgar, e fascista em seu conteúdo, não nos enganemos,
segue iludindo a muitos e gozando de considerável parcela da opinião
pública. Sobretudo em dias em que a Polícia é apresentada como solução
para todos os males, incluindo aqueles sociais e de saúde pública.
Pois bem. Quem eram, na verdade, os ditos “heróis” que teriam “defendido a Pátria” da “ameaça comunista”?
Eram simplesmente matadores profissionais,
viciados em drogas, estupradores depravados, numa palavra, a escória
mais imunda de nossa sociedade. Assim era Sérgio Paranhos Fleury,
recrutado pelos órgãos militares por sua “eficaz” atuação junto aos
Esquadrões da Morte em São Paulo, torturador que fez fama por sua
crueldade e por ter enriquecido com dinheiro arrecadado a empresários
para financiar a máquina de morte do regime militar. Assim é, por
exemplo, Sebastião Curió Rodrigues de Moura, julgado por vários
assassinatos após o término do regime militar, que “herdou” o garimpo de Serra Pelada. Assim é, também, esse tal Cláudio Guerra.
Quando deslocado para o DOPS do Espírito
Santo, este senhor já havia cometido –como assume no livro –mais de 40
assassinatos em Minas Gerais, todos ligados à defesa do latifúndio
contra o movimento camponês em ascensão no início dos anos 60. Chegando
ao Espírito Santo, no início dos anos 70, comete mais 35 execuções
contra presos de direito comum. Segundo o próprio Guerra, “Se lá (em Minas) servi às elites rurais, (aqui) no Espírito Santo prestei serviço às suas elites políticas”.
Essas as credenciais “ideológicas”
satisfatórias para ingressar no quadro de combate à “subversão”. Não
falamos de soldado raso: falamos de um delegado do DOPS. Por aí já
vemos a infâmia, a indecência daqueles que, ainda hoje, pretendem
sustentar a tese da “revolução democrática de 64”, chegando a apelar
–vejam só –até para o Estatuto do Idoso, como fizeram os milicos após
serem escrachados em frente ao Clube Militar do Rio de Janeiro, no
último dia 29 de março! Sim, aqueles que violaram a Carta da ONU e o
Estatuto de Nuremberg precisam agora apoiar-se em seus cabelos brancos,
com medo da fúria de nosso povo...
Corpos incinerados:
No livro, Guerra diz ter sido responsável
pela incineração dos corpos de 10 militantes revolucionários
assassinados sob tortura nas masmorras do regime militar. Antes de mais
nada, é preciso ressaltar a necessidade de muita cautela antes de dar
por encerrado esses casos –e logo as buscas. A opinião de um facínora
pode ser até uma evidência, mas não uma prova. Somente uma investigação
séria, supervisionada pelos familiares, pode merecer toda
credibilidade. Em todo caso, esses militantes que tiveram seus corpos
queimados teriam sido, segundo o autor e réu confesso:
- João Batista e Joaquim Pires Cerveira, presos na Argentina pela equipe do delegado Fleury;
- Ana Rosa Kucinsk e Wilson Silva, “a mulher apresentava marcas de mordidas pelo corpo, talvez por ter sido violentada sexualmente, e o jovem não tinha as unhas da mão direita”;
- David Capistrano (“lhe haviam arrancado a mão direita”) , João Massena Mello, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho, dirigentes históricos do PCB;
- Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho, militantes da Ação Popular Marxista Leninista (APML).
- Ana Rosa Kucinsk e Wilson Silva, “a mulher apresentava marcas de mordidas pelo corpo, talvez por ter sido violentada sexualmente, e o jovem não tinha as unhas da mão direita”;
- David Capistrano (“lhe haviam arrancado a mão direita”) , João Massena Mello, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho, dirigentes históricos do PCB;
- Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho, militantes da Ação Popular Marxista Leninista (APML).
Todos constam atualmente da lista de mortos e desaparecidos.
Segundo Guerra, a incineração dos corpos
teria ocorrido na usina de cana-de-açúcar Cambahyba, em Campos, de
propriedade do ex-vice-governador do Rio de Janeiro Heli Ribeiro. Por
seus serviços, Heli Ribeiro, que também foi deputado federal e filiado
à ARENA e ao PFL –hoje DEM –teve abertura de crédito e outras benesses
ofertadas pelos militares. Tal atrocidade teria ocorrido no ano de
1973, sob o governo Médici. Segundo Guerra, a usina teria sido
“vistoriada” e aprovada pelo coronel do Exército Freddie Perdigão
Pereira, que trabalhava então para o Serviço Nacional de Informações
(SNI) e pelo comandante da Marinha e então agente do Centro de
Informações da Marinha (CENIMAR) Antônio Vieira. Ambos já faleceram.
À época, a história contada foi a de que
Fleury teria caído de uma lancha em Ilha Bela, e morrido afogado.
Segundo Guerra, no entanto, o facínora teria sido dopado e golpeado com
uma pedra antes de ter sido lançado ao mar.
Também por queima de arquivo, teria sido
assassinado o jornalista Alexandre Von Baumgarten, dono da revista “O
Cruzeiro”. No livro, Guerra também admite participação no atentado
frustrado no Rio Centro, aonde um grupo de militares opostos à chamada
“abertura política” planejavam explodir três bombas no show
comemorativo de 1º de Maio e incriminar as organizações de resistência
ao regime. Segundo o autor, além de Freddie Perdigão (SNI) e Antônio
Vieira (Cenimar), Brilhante Ustra, que está vivo e
atuante nos círculos de direita, também teria comandado a operação
terrorista. Além desses crimes, em outra passagem Guerra também
confessa ter sido frustrado um plano para executar Leonel Brizola.
Aqui se faz, aqui se paga: o exemplo de Nuremberg
Atualmente, Cláudio Guerra, que se diz
arrependido, tem duas condenações de crimes bárbaros cometidos após sua
saída do DOPS: uma pelo assassinato do bicheiro Jonathas Borlamarques
de Souza, que lhe custou sete anos de prisão, e outra –a 18 anos, que
está suspensa judicialmente –pelo assassinato de sua primeira esposa e
de sua cunhada.
Tais crimes, brutais, porém de direito
comum, lhe custaram condenações e prisão. Crimes hediondos, cometidos
contra militantes revolucionários no contexto da repressão política,
entretanto, provavelmente não lhe acrescentarão um dia sequer de
cadeia, apesar de o réu ser confesso. Essa é a face realmente absurda,
para não dizer monstruosa, da Lei de Anistia, a última palavra da
suposta “reconciliação nacional”!
Já na repercussão da divulgação do livro, com muita propriedade, a membro do Grupo Tortura Nunca Mais Rose Nogueira afirmou: “É o Auschwitz do Brasil. Os militares usaram métodos nazistas, como a tortura, e agora vemos que houve também a incineração”.
Sim, métodos típicos de Auschwitz. Aliás,
data do fim da II Guerra Mundial e dos famosos Julgamentos de Nuremberg
toda uma legislação internacional a respeito de crimes contra a
Humanidade, tais como tortura, assassinato e desaparecimento forçado,
crimes esses considerados atualmente imprescritíveis e impassíveis de anistia. É
fato histórico, aliás, que os carrascos nazistas levados pelos Aliados
a Nuremberg foram devidamente julgados, processados e condenados. Dos
réus, 12 foram condenados à morte por seus hediondos crimes. E ninguém,
exceto meia dúzia de lunáticos saudosos de Hitler, lamenta ou entende
por absurda essa sentença.
No nosso país, dito “democrático”,
passadas mais de duas décadas do fim do gerenciamento terrorista
civil-militar, aqueles que estudaram e aplicaram com esmero os manuais
da GESTAPO de Hitler –traduzidos e atualizados pela CIA –seguem
impunes, mesmo tendo admitido seus crimes. Sim, os nazistas
tupiniquins, a serviço da subjugação nacional pelo imperialismo ianque,
foram anistiados, sem ter sido nunca sequer processados.
A título de registro, aliás, gostaríamos
de encerrar esta matéria lembrando um episódio pouco conhecido de nossa
história. No dia 9 de outubro de 1946, durante sessão da Assembléia
Constituinte, o reacionário historiador Gilberto Freyre (constituinte
pela UDN de Pernambuco) subiu à tribuna para protestar, “em nome da
consciência universal cristã”, contra a pena de morte imposta aos
criminosos nazistas julgados em Nuremberg. Indignado, Maurício Grabois,
dirigente da bancada do Partido Comunista do Brasil, reagiu prontamente
e afirmou:
“A clemência para com esses bandidos
nazistas em Nuremberg poderá significar, para o futuro, a morte de
milhões de homens livres”.
Sábias palavras. Atuais também.
No hay comentarios:
Publicar un comentario